Em Fevereiro de 2019 quatro fotógrafos viajaram para Pripyat, Ucrânia. Foram à procura do que ficou depois de Chernobil. Dessa viagem resultou o livro 11977 e uma exposição homónima. António (Tó) Matos é um desses quatro fotógrafos. Um ilustre desconhecido, o grande Tó Matos, jovem de meia idade, experiente em muitas coisas que não a fotografia partilha a sua aventura connosco.

É inevitável que comecemos por aqui. Como é que começou a ideia da viagem?
Vamos a isso então. O bichinho de visitar Pripyat é antigo. Já me acompanhava há anos. Volta e meia vinha ao de cima. Em 2018 li uma notícia sobre as diversas formas de se poder visitar a zona de exclusão. Foi nessa altura que decidi, depois de pedir autorização à patroa, ir a Pripyat.
Queria muito ir no Inverno. Comecei a fazer planos para ir em Janeiro e foi nessa altura, que por pressões conjugais, convidei os outros 3 para irem comigo
Pressões Conjugais?
Sim, a patroa estava com medo que fosse raptado na Ucrânia. (risos)
Tão querida. Mas voltando à viagem. Porquê no Inverno?
Por um lado queria experimentar aquelas temperaturas. Nunca tinha estado na neve e esta era uma oportunidade de o fazer. Por outro lado tinha uma razão estética. Ia fotografar a preto e branco e a neve ia, e fez, aumentar o contraste das imagens exteriores, criando um ambiente mais taciturno e contemplativo. Permite aderir a uma estética mais crua. Algo mais duro.

Foi fácil convencer o grupo?
Foi sempre fácil convencer o grupo. Fui eu quem planeou tudo, contactou as pessoas, marcou o que havia a marcar com os locais. Eles só entraram no avião. Claro que tive de alterar para Fevereiro porque eles estavam com medo do frio. Mas tirando isso foi fácil.
Quando falei com o Francisco (Mendes) ele explicou como foi para Chernobil sem planos e sem preconceitos. Foste com a mesma mentalidade ou levavas ideias na bagagem?
Bagagem cheia. A viagem tinha por objectivo o terceiro fascículo da série isto não é bem uma zine (editada pelo Barba ao Vento). Estava muito focado nisso.
Durante meses devorei o que encontrava sobre o acidente e os tempos seguintes. Sei lá quantos documentários é que vi. Mas valeu a pena. Acho importante ir preparado, ou tanto quanto possível, para este tipo de situações em que o tempo é muito limitado ou de contexto histórico muito vincado, como aliás é o caso.
Por outro lado, eu fotografo para mim. Hoje em dia preciso de ter intenção previamente definida para me motivar a pegar na máquina. Se não estudar o meu destino, o meu assunto de antemão, tenho muita dificuldade em fotografar. Claro que tem de haver espaço para o inesperado, para que a ideia cresça. Mas a ideia inicial tem de lá estar.
Um exemplo parvo disto de ir “preparado”. No dia que chegamos a Kiev, fomos dar uma volta. A determinada altura entramos uma espécie de pastelaria para comer qualquer coisa. Eu fui pedir, já não me lembro do nome, era uma espécie de folhado de salsicha que eles têm, uma verdadeira delícia. Os outros pediram uns donuts com ar de três quinze dias. Quando vi o que eles tinham pedido perguntei-lhes se eles tinham aberto os links que lhes tinha enviado sobre a gastronomia do pais. Todos disseram que não. Moral da história, eu comi o “pastel de nata” de Kiev e eles deitaram quase tudo para o lixo.
Quer isso dizer que gostaste da gastronomia local?
Credo não! Em Kiev ainda vai lá, mas em Chernobil foi difícil. Pega no teu conceito de comunismo. Certo? Utilitário, pragmático, função sobre a forma. Aplica isso à comida. Sais de lá alimentado, mas é impossível tirar prazer das refeições.
Talvez a excepção seja o pequeno almoço. Foi sempre uma delícia.

Voltando ao trabalho, referiste um livro individual. Ainda vai acontecer?
Certo. Não. Já não faz sentido. No primeiro, ou segundo dia, não tenho a certeza, o Francisco (Mendes) lançou a ideia de fazer um livro de grupo. Os outros aceitaram de imediato. Eu só aceitei depois de voltar a Portugal. Quando o fiz, foi na condição de respeitar a minha ideia original (do livro ser publico pelo Barba ao Vento). A determinada altura, o grupo começou a divergir e escolheu outro caminho.
Mas continuámos a usar o design que fizeste para nós, as materialidades que escolheste, e a narrativa que fizeste. Bom, que fizemos, nós (o grupo) também participámos. Ainda me lembro do primeiro dia. Chegaste lá e disseste – “para mim esta é a imagem central do livro”, a do Francisco (Mendes) da sala de espera do Hospital. – “Esta é a primeira”, a minha do carro, e – “esta é a última”, a minha do cão. Tudo partiu disso e foi super rápido e fluido. Pouco mudou ao nível da estrutura narrativa desde essa sessão inicial. Claro que depois houve experimentação e avanços e recuos, mas aquela sessão inicial de facto ditou o mote.
Já que tocas nesse tema, confesso alguma desilusão por se terem desviado do rumo inicial.
Imagino que sim. Houve uma altura em que pensei em me afastar do projecto. Não é segredo. Mas para te ser honesto, acho que a melhor opção foi ficar. Ao menos as fotografias vêm a luz do dia. Daqui a 10 anos já ninguém se lembra dos “como” e dos “porquê”, mas o livro fica. E é isso que importa.
Sabes, para mim a fotografia tem de ter uma finalidade. Não pode ficar na gaveta. Partilhar nas redes sociais não conta. No fim do dia, é preferível fazer este projecto ver a luz do dia, mesmo tendo de aceitar algumas situações que fogem ao nosso plano, à nossa vontade, do que deixar as coisas na gaveta. Não é a história de viagem que tinha em mente fazer, mas é uma boa história, diferente e igualmente interessante.
Sentimentos contraditórios ai. Queres elaborar?
Não há nada a dizer. Trabalhos em grupo são sempre permeáveis a conflitos das mais variadas naturezas, mesmo quando as regras do jogo são definidas à cabeça. O que importa é que conseguimos um objecto interessante por um valor razoável.

É justo, vamos voltar ao livro. Que história é essa que referes? Qual é, na tua visão, a mensagem do livro?
Bom, isso depende a quem perguntares. (risos) Para mim, é sobre o tempo. O tempo é “A” personagem do livro. O tempo está no título escolhido, o tempo está na narrativa e nas imagens. O tempo como maré que sobe e distorce a forma da dunas. O tempo como Juiz do que fizemos e do que resultou duma situação horrível e de uma tentativa vil de esconder ao invés de auxiliar. O tempo que mostra que depois do abandono vêm nova vida, desta vez pela recuperação do espaço pela Natureza. É isto que abordo no meu texto, não só, mas também.
Acabamos por ter uma posição de observadores, na sua maioria sem julgamento. Mas lá está, éramos quatro, cada um com a sua abordagem, o que faz com que as posturas sejam dispares, mas equilibradas.
Chernobil não é um tema fácil. Consegues falar um pouco sobre o que mais te impressionou na viagem? O que te marcou mais?
Podia dizer que foi o silêncio da cidade. Que é algo de impressionante. Só se ouve o vento a bater nas árvores. Não há um pássaro, um grilo. Os teus passos ecoam pelas ruas fora. Também podia dizer que os locais onde ainda se nota o rápido abandono de Pripyat, como o Hospital.
Mas acho que o que me marcou mais foi a atitude dos locais, como o guia, ou os trabalhadores de Chernobil em toda a situação. Para nós todo o acidente e as dezenas de milhares de mortes estavam bem presentes na nossa memória recente. Mas para eles é história antiga. Já não está presente no seu dia a dia. A vida passou por ali e continuou. Não digo que sejam insensíveis ao tema, claro que não, mas a aceitação já aconteceu.
Sei que tens uma posição relativamente reservada no que confere a exposições. Para além do livro, vão inaugurar uma exposição. Queres falar um pouco sobre isso?
Não tenho nada a dizer. Não participei na sua (exposição) concepção. Isso é tudo com os outros (elementos do grupo).

Tó, muito obrigado pelo teu tempo e sinceridade. Por último, queres deixar uma mensagem a quem vai visitar a exposição e o lançamento do livro no próximo dia 28?
O prazer foi meu. Claro que quero. Apareçam. Apoiem as iniciativas amadoras. A fotografia portuguesa precisa de vocês. O livro está interessante e acredito que irá ser do vosso agrado.
O Tó Matos não se encontra online.
Imagens Copyright © António Matos