Arlindo Pinto, nascido em 1962, com duas décadas de prática fotográfica e autor de diversas publicações fotográficas onde se incluem “Take My Body”, “i”, “Today is a Long Time” e “Norwegian Sky 9”. Perto de lançar o seu mais recente trabalho denominado “Catálogo de Silêncios”, fala connosco sobre o seu percurso, a sua fotografia e o que o futuro lhe pode apresentar.

Tens uma relação muito próxima com a publicação física nos teus trabalhos, as mais de 16 publicações que tens em teu nome são uma prova dessa relação. O que te atrai a este formato?
Há várias coisas que me levam para esse tipo de formato para divulgar o trabalho. Comecei a mostrar trabalho com mais insistência em 2011. Não fotografo há muito anos, fotografo desde o ano 2000. Só em 2011 com a “Alegoria do Inferno” é que mostrei trabalho com consistência. O trabalho (fotografias de 90×60) esteve exposto na Figueira da Foz, na Amadora e em Lisboa na Santa Casa da Misericórdia. Quando começamos na fotografia temos grandes ambições e sem assentar muito bem os pés na terra, ou seja, projectamos para além do que efectivamente, em consciência e na realidade, devemos.
Apresentei o trabalho em Coimbra, no OPENSHOW Portugal, em janeiro de 2013, a convite da Susana Paiva. Foi provavelmente a primeira vez que estive com a Susana. Investi dinheiro na exposição que ficou cara, entre impressões e molduras. As pessoas gostam muito e tudo mais, mas para comprar é mais difícil. Não é propriamente um livro que custe 10€, 15€ ou 20€ e se passar dos 20€ ou 25€ já é uma trabalheira para vender. A partir do momento que comecei a trabalhar com o Portfolio Project, com a Susana Paiva, com o Photobook Club [de Lisboa] e a ter um contacto mais próximo com o livro de fotografia, muito prosaica e objectivamente, achei que o livro era mais barato e podia chegar a mais pessoas. Esse é um dos motivos que me leva a optar pela divulgação do trabalho num formato de livro, Zine ou postais.

Outra razão é que de certa forma comecei a apaixonar-me pela possibilidade de qualquer pessoa ter em casa um objecto que pode consultar várias vezes, ter um conjunto de imagens que são coerentes entre si, eventualmente apoiadas por texto, ou não. Podes sempre revisitar, como um filme que tens em casa em DVD ou VHS, se fores desse tempo. Não é só uma questão económica, poderes fazer mais com menos, é também a possibilidade de poderes chegar a mais pessoas.
Isto pode ser dúbio, no sentido de que uma exposição num centro comercial e passam por ali milhões de pessoas. Mas ninguém olha para aquilo com olhos de ver. Portanto, para nós autores que somos os nossos próprios editores, fazemos fotografia sem o apoio de grandes editoras, e comercializamos os nossos próprios produtos, a parte económica é sempre muito importante para manter o trabalho sustentável. O livro parece ser a melhor opção. Por exemplo a [exposição] “Alegoria do Inferno” foi uma desgraça, vendi 2 ou 3 e os outros estão na garagem à espera de melhores dias.
E gosto do papel, sobretudo numa altura em que nos desligamos cada vez mais do papel com as publicações online. Quem gosta da fotografia gosta da fisicalidade. Os papeis, as tonalidades, a gramagem, o cheiro dos papeis e o cheiro da tinta, criam uma relação diferente. Como uma relação amorosa com estes condimentos todos. Algo que a frieza do monitor não tem. Em termos de experiência é um conjunto de dimensões totalmente diferente. A meu ver mais interessantes.
Por outro lado, isso dá-te a possibilidade também de conhecer outras pessoas, o trabalho das gráficas, começar a perceber como uma gráfica trabalha ou não trabalha, dos problemas que estão associados às publicações de livros. Por exemplo, com o Norwegian Sky 9 tive alguns problemas com uma gráfica muito reputada no mercado com quem colegas nossos trabalham e com trabalhos muito bem impressos. Mas isso dá-nos traquejo, embora possa trazer algumas ansiedades.
Eu gostei sempre de livros. Lia muito livros quando era miúdo dos que traziam as carrinhas Citroën. Comecei a ler aí.
Agora voltaram. Vários municípios trouxeram de volta esse programa.
Estas bibliotecas móveis chegavam a Freixo de Numão, onde eu morava quando era miúdo, que é uma aldeia perdida nos confins do município de Vila Nova de Foz Coa, Guarda. Era a única forma de conseguir ler alguma coisa. Lia avidamente e com regularidade entregava os livros na carrinha e ia buscar outros, sempre que a carrinha nos visitava no Largo da Igreja. Não eram, naturalmente, livros de fotografia, mas era literatura que me ajudou a criar alguma cultura e interesse no livro e sobretudo a manter viva alguma coisa, que depois foi adormecendo com a idade, que é a imaginação. E a imaginação é parte fulcral da fotografia.
Gosto muito de inventar histórias, quando tenho vagar, não só em fotografia mas em escrita. Não me esqueço um comentário de um amigo meu, o José Faísca, num artigo do meu blogue há uns anos – “com tanta fotografia, nós até nos esquecemos que tu és bom é a escrever”.
Só se escreve bem, lendo muito, e eu reconheço que é mais difícil para mim escrever hoje do que há 20 anos. Porque não tenho lido tanto, por razões profissionais, e porque tenho a fotografia. É certo que leio sobre fotografia, mas as histórias do fantástico para mim são muito interessantes. Sejam do Edgar Allan Poe, do Alfred Jarry ou do Franz Kafka que são dos meus autores favoritos. Tudo o que não faça sentido aparentemente, para mim é espectacular, é do que gosto.
[Relativamente ao “Norwegian Sky 9”] Quem tem o livro e quem leu os textos percebe que eu levava qualquer intenção de fazer um projecto fotográfico. Sendo fotógrafos, arriscamos-nos a fotografar e a ter um conjunto de fotografias que valem uma publicação. Isso foi um risco que corri, de livre vontade, e acho que até me saiu bem. A produção é já outra coisa e mais complicada.

Não conhecendo a história da produção, tendo um exemplar do livro, o resultado final foi bastante interessante.
Para mim foi muito exigente porque ainda não tinha feito uma coisa assim, por outro lado queria muito fazê-la, nem que isso fosse uma desgraça completa. Nunca tinha trabalhado com um designer, no caso o Nuno Moreira, que acho que fez um excelente trabalho.. A Susana ajudou-me bastante na edição das imagens, que é uma área em que tenho algumas dificuldades, pelo menos com o meu próprio trabalho. É sempre bom ter o olhar de outras pessoas. Entre a edição das imagens e o design, as gráficas e os orçamentos, foi inexplicavelmente stressante.
São problemas bons porque é algo que queria fazer, e fiquei a perceber como fazer, ou como não devo fazer, da próxima vez. Foi toda a gente espectacular, mas cada um com as suas opiniões. E conciliar opiniões não é fácil. É certo que o autor tem sempre a última palavra a dizer, mas da discussão nasce a luz, embora possa ser muito acesa, e não vale a pena a gente “queimar-se”. Como dizia o outro – “é só fotografia pá, vamos dormir descansados”.
Algo que, desde cedo, me atraiu ao teu trabalho, é que não tens "uma" estética. A tua fotografia é fluída e adapta-se ao projecto que queres construir. Se compararmos, por exemplo, o "Take My Body" com o "Alegoria do Inferno", ou o "i" com o "Na luz encontro abrigo", são bastante distintos. O mesmo pode ser dito da fisicalidade do objecto. São drasticamente diferentes. Quando começas um projecto tens uma estética em mente ou as coisas tendem a aparecer à medida que estás a fazer o teu projecto?
Há sempre uma ideia base. Depois ao longo do projecto vai sendo limada. No “i” ou no “Na luz encontro abrigo” já sabia o que queria fazer em termos físicos para os objectos. Mas depois há pequenas coisas que vão sendo apuradas, como por exemplo como é cosido o miolo ou a impressão. Enquanto construo o projecto sei se ficará melhor numa zine ou num livro, outras vezes não faço a menor ideia, faço as imagens e faço testes para ver qual será a melhor opção.

Deixas que o trabalho fale contigo.
É um pouco isso. Sabes, isso que disseste é uma questão interessante porque para mim é uma coisa boa. Para outros autores, se calhar, é uma coisa má. Falo dos nomes que já estão legitimados na área da fotografia, possuem trabalhos consolidados como autores e são reconhecidos como tal. Que é o trabalhares sobre uma certa estética, mais ou menos semelhante a toda a hora. Isso ajuda no sentido de te ires aperfeiçoando no trabalhar essa estética e nos conceitos que lhe estão subjacentes.
Aqui há uns tempos um fotógrafo dizia-me isto – “Assim talvez tenhas muitas dificuldades em afirmar o teu trabalho, porque não tens uma linha coerente de trabalho. Não há aqui um fio condutor”. Este fotógrafo não trabalha esta área como, estou-me a lembrar do [Daniel] Blaufuks e a forma como aborda as questões da memória e do holocausto.
Mas o próprio [Daniel] Blaufuks tem uma estética coerente se olharmos numa perspectiva cronológica. Ele é como uma boa banda [musical], so sentido em que está cá há 40 anos e se compararmos o primeiro trabalho com o último não tem uma coisa a ver com a outra, há uma evolução, mas essa evolução é gradual. Portanto essa coerência existe mas não é imutável. O problema muitas vezes é que a forma como muitos de nós encontramos para atingir essa coerência é quase como trancar a coisa numa caixa e não permitir que ela mude com o tempo.
Sim, isso é verdade e é uma questão muito interessante. É uma questão a que tenho tentado responder para ficar em paz comigo próprio e para perceber se estou no caminho certo, no caminho que eu quero. É-me indiferente em que se diga que “está aqui uma linha estética muito ou pouco vincada, ou este individuo é maluco e cada vez faz uma coisa diferente”. Eu sou uma alma inquieta. Para construir esta frase “Eu sou uma alma inquieta” demorei muitos anos. O mundo é tão vasto e tão interessante e com tantas coisas à disposição, que quero agarrar todas. O que quero dizer é que quero fazer coisas diferentes, seja fotografar de forma diferente, seja fazer objectos diferentes. Quero fazer diferente de cada vez que faço.
Isto faz-me lembrar um músico de que gosto muito, o Neil Young. As canções assentam numa estrutura muito semelhante. Ele toca sempre as mesmas coisas, mas a forma como elas estão vestidas é diferente. Lembro muito bem quando ele se chateou com a Geffen Records e lhe pediram um album do género obra prima. E ele não foi de modas, fez-lhes um disco de Rockabilly, que é uma coisa que não passaria pela cabeça de ninguém, mas passou pela dele. Acho isso muito interessante. Depois ele tem discos mais pesados e discos mais intimistas e não deixa de ser o Neal Young. E é essa inquietude, querer fazer coisas diferentes e não me prender a uma estética. Se calhar se eu procurar, se pensar no assunto há uma linha.

A questão da identidade é algo que está muito presente no teu trabalho.
É uma das questões que, não vou dizer que me preocupa, mas que me ocupa. E é o saber, ou tentar descobrir, quem sou e o que faço aqui. É como a canção do Paulo de Carvalho.
Por falar em canções, estar-te a ouvir falar sobre esta questão da estética e de te dares o espaço de mudar, e embora não o tenhas dito, eu acredito que esteja também presente a possibilidade, e o direito, de te contradizeres. Faz lembrar a "Metamorfose Ambulante" de Raul Seixas.
Eu não diria melhor. É mesmo isso. O Sartre a determinada altura deve ter sido apanhado em contrapé. Caiu em contradição e foi confrontado com isso e disse – “Viver é estar em contradição”. Estar em contradição é uma coisa que eu assumo. Assumo mesmo nos textos que escrevo. E isso não me preocupa minimamente. Podem ser contextos diferentes e sou livre de pensar de outra forma. Liberdade para mim é fundamental.
Aqui há tempos estava a discutir fotografia com a Susana Paiva, a forma como a minha fotografia tem evoluído. Comecei por fazer coisas mais radicais. O “Norwegian Sky 9” e este próximo trabalho são talvez fotografia mas “mainstream”, ou que as pessoas estão mais habituadas a ver porque tem um referente muito claro, aparentemente.
A fotografia vai sendo refinada, vai sendo cada vez mais apurada naquilo que se vê e no que está por detrás da fotografia. Se bem que tu podes-me dizer – “não quero saber nada do que está atrás da fotografia, eu quero ver a fotografia. Se é boa é boa, se não é boa não é boa, independentemente de seres A ou B ou C”. É uma forma de pensar legitima.
Não negamos que as fotografias nos despertam determinados tipos de sentimentos. Ao invés de serem tão directas do ponto de vista imagético, despertam várias emoções, mesmo que o referente seja uma coisa quase óbvia. Mas a “Alegoria [do Inferno]” não tem nada de óbvio. O “Everything is not” também é uma coisa muito estranha.

O "i" também não é óbvio.
Sim, também não. Eu oscilo entre estes dois mundos. Entre o que é aparentemente o óbvio e o que é o sonho, o que é passares aquém, ou além, da realidade. Isso dá-me muito prazer, hoje fazer uma coisa, amanhã outra e depois fazer outra.
Estava a olhar para o “Today is a long time” que tem referentes facilmente identificáveis mas tem uma carga emocional muito grande. É um livro que eu adoro. Sobretudo por ter sido feito onde foi e por outras razões muito pessoais. Trabalha um pouco o arquivo, sobretudo o arquivo familiar. Não é um trabalho de album de família, mas tem uns apontamentos que ajudam a compor o livro. Nesse sentido estou agradecido ao Fábio Roque que me incentivou a transformar a edição com fotografias de album de família. Ele sentiu que aquelas fotografias faziam sentido com as pessoas que estavam ligadas ao lugar. Saiu muito bem nesse aspecto, e continua a ser um trabalho sobre identidade. É sempre “donde venho”, “o que sou”, “para onde vou” e “o que faço aqui”. A minha fotografia anda muito centrada nisso. Entre nós, que ninguém vai ouvir, estas questões são muito importantes para mim.
A própria “Alegoria do Inferno”, quando tento, fotografando o céu, construir o inferno, não sei se isto é uma contradição, pelo menos uma alusão à questão da religião. Curiosamente, não sendo um individuo praticante, fui criado no âmbito de uma família católica. Sou crismado. A religião interessa-me, não porque seja praticante mas do ponto de vista do questionamento das coisas.
E este ano pode ser um ano decisivo nesta matéria. Com a pandemia e o que tem sido a minha vida, estou necessitado de experienciar e de perceber onde estou espiritualmente. Não sei se com meditação ou algo transcendental ou tornar-me Budista, mas tem de acontecer. Tenho de perceber isso. O saber dá-me conforto. É importante para mim ter uma âncora. Ter certezas na vida. A vida é muito incerta, o mundo é muito incerto, é tudo uma grande incerteza.
Preciso de saber para viver.

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Na 2ª parte da conversa com Arlindo Pinto focamo-nos no seu trabalho mais recente, o “Catálogo de Silêncios”.
Imagens Copyright © Arlindo Pinto
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