Nesta 2ª parte da conversa com Arlindo Pinto, abordamos do seu mais recente trabalho chamado “Catálogo de Silêncios”. Do processo ao lugar da obra no catálogo do Arlindo Pinto. O que o move e considerações sobre as suas imagens.
A 1ª parte está disponível aqui.

Está na altura de falarmos sobre o teu próximo trabalho. O teu próximo trabalho está aí a chegar. "Catálogo de Silêncios", queres levantar um pouco o véu sobre o que é este trabalho?
Este é um daqueles trabalhos que surgiu no âmbito da Escola Informal de Fotografia e do Espectáculo [EIF(E)]. As fotografias foram feitas antes de saber para que é que iam servir, como no “Norwegian Sky 9”.
Tomei algumas decisões do ponto de vista estético. Foi tudo feito com filme, que é uma coisa que de vez em quando revisito. Não tanto como tu, que és um “filmógrafo”. Devo-te dizer que cada vez me agrada mais fotografar com filme. O ser processado por vários meios digitais, acaba por dar um produto final que é diferente do que seria o negativo impresso no papel, directo. Mas essa foi umas das decisões. Usar o negativo a preto e branco, quer pela materialidade da fotografia, quer pelo grão que depois se transforma em ruído com a digitalização.
Tomei a decisão de ir fotografar lugares. Lugares que me ajudaram a edificar, a construir-me. Eu estive ali, há 50 anos atrás. Os lugares em si têm memória. As fotografias não são fotografias de memória, no sentido em que elas só serão memória daqui a não sei quantos anos. Fotografei os lugares e as memórias que tenho deles ou de lugares que de alguma forma me trazem à ideia paisagens de infância.

Depois há uma também uma componente que eu procurei. Aparecem coisas pelo caminho que são contra-corrente, como a fotografia que em que aparece uma televisão no meio do nada. Mas a televisão está muito presente nas nossas vidas, e para mim também é memória. Além do mais acho que há um jogo muito interessante entre aquilo que é a imagem televisiva e a imagem da fotografia.
Em simultâneo, há meia dúzia de fotografias que evocam o espaço urbano. Há símbolos religiosos novamente. Quando pensei nisto, depois de ter as fotografias e de as por no chão, não tenho as 800 ou 600 do Robert Frank, mas não cabem em cima da mesa. O livro tem uma entrada e tem uma saída. Há fotografias queimadas. O back da câmara partiu-se, só me dei conta passado uns tempos e algumas saíram queimadas. Mas isso serviu perfeitamente. Uma das coisas que se estava a tentar explorar era o erro, o acaso. Mas aquilo que tinha em mente era uma coisa circular. Era o vires, o estares e o voltares. Ou seja, nasceste, estavas no campo e vieste para a cidade e voltas para o campo. A tua vida é um pouco este ciclo. As origens, tens um lugar onde nasceste, um lugar onde alguém te espera, como os teus pais ou outra família. E tens o lugar onde fazes a tua vida.
Pelo meio aparecem coisas que não vão ao encontro daquilo que possas estar à espera. Tenho sempre essa preocupação de não entregar o ouro ao bandido. Não jogar as cartas todas de uma vez. Todos nós gostamos de ser surpreendidos. E quando pensas que já entendeste a história, de repente já não estás a entender outra vez. De alguma forma isso ajuda a prender o leitor e a dizer que a vida não é assim tão linear. A propósito destas imagens, e quando na EIF(E) se começou a falar na questão do silêncio, pensei que podemos procurar construí-lo e procurar a paz de espírito. Essa paz de espírito é um silêncio interior, é teres a cabeça liberta.
Quando olhei para as imagens, os espaços evocavam silêncio, nostalgia, abandono, vazio e ainda que seja uma floresta. Achei que as imagens se enquadravam naquilo que era o conceito que estava em jogo.
Para mim isto começou a ser um catálogo. Cada espaço é um espaço de silêncio. Pode ser um silêncio diferente, daquilo que intuis ou que vês. Daí ter começado a construir isto como se fosse um catálogo. Como daqueles das tintas em que tens várias folhas em que tens cores diferentes. Ou usas uma ou usas outra, todas têm matizes diferentes. Esta ideia agradou-me muito.
Fiz um ensaio com a Imagerie [- Casa de Imagens], com algumas destas imagens em gumoil. Ficou muito engraçado, sobretudo porque à ultima da hora decidi que os negativos podiam ficar por cima da imagem, e quando os mexes ficas com uma sensação de tridimensionalidade da imagem.
Depois o que a publicação irá trazer são os textos. Não são leituras das imagens, isso cada um faz a sua, e eu já fiz a minha. Abordam questões relacionadas com a fotografia, com as vivências. Vivências minhas que podem ser do passado, do presente ou do futuro destas imagens. Evocam temas que me interessam nesta área, que é a vida.
Atrevo-me a dizer que do ponto de vista daquilo que são as imagens, não são imagens de queixo caído. Valem pelo todo que constroem. Isso tem sido aquilo que eu faço. Estas paisagens em mim despertam sentimentos.
Deu-me bastante gozo escrever os textos. Um ou outro fui buscar a textos mais antigos. Ou seja, deve haver aqui um texto ou outro que tem há vontade 30 ou 40 anos, não trabalhado desta forma, claro. Outros, naturalmente, são de agora. Quis fazer uma coisa um pouco orgânica e introduzir algumas coisas manuscritas.

As tuas imagens são para serem descobertas. Não são imediatas. Carecem de observação e de reflexão. Não só da imagem pela imagem, mas também a imagem naquele contexto.
Estou de acordo contigo, aliás estamos de acordo com muita coisa. Gostei muito do último texto que escreveste, que agora vou vendo – “Este gajo está a falar de coisas que me interessam”. Isso que estás a dizer falámos eu e a Susana Paiva. A imagem que parece óbvia mas que tem há uma dimensão de sonho, uma dimensão diferente. Elas valem não por aquilo que estás a ver, mas por aquilo que podes ver. É nesse sentido que a minha fotografia tem evoluído.
Agora estava a lembrar-me, a propósito do “Norwegian Sky 9”, alguém falou do Alec Soth, obviamente as imagens dele são muito mais do que aquilo que ali está. Como todas as imagens, as que interessam.
Diria que este trabalho é quase um percursor à tua acção reflectiva sobre as tuas origens e a espiritualidade que referias à pouco [ver parte I da entrevista]. Há pontos de contacto, entre o que é a tua linha condutora, a identidade, o que é e de onde vieste, mas agora aqui, temperada com um questionamento sobre o teu papel.
É uma das coisas a que tenho dado cada vez mais atenção. Oscilo entre o individuo do campo e o da cidade, como na canção do Phil Ochs a “City Boy” e o John Denver a “Take Me Home, Country Roads”. A determinada altura somos muito fascinados pela cidade. Quando era miúdo vim a primeira vez a Lisboa, tinha 7 anos, foi fascinante ver as luzes. Depois tive de vir, não havia outro sítio para onde estudar. Depois dos estudos vem o trabalho, o casamento, o divórcio, e ficamos por aqui.
As origens foram sendo cada vez mais importantes para mim. Tal como as pessoas. O “Today is a Long Time” é isso. São as pessoas e as origens. É onde as origens estão mais vincadas. Fiz 3 ou 4 apresentações do “Today is a Long Time” e não consegui evitar emocionar-me com o livro. Porquê? Não propriamente pelas fotografias da casa dos meus avós, ou das fotografias dos meus avós e dos meus pais que ali estão, mas pelo sentimento que isso me invoca. Aquilo que representam na minha construção.
Não sou indivíduo praticante de religião nenhuma, sou até agnóstico. Ou pelo menos duvido da existência de Deus, é o mínimo que posso fazer. Acredito que nunca pode ser provada a existência de Deus. Mas de alguma forma é interessante e bonita a ideia de pensares que a tua avó ou o teu avó está sempre contigo. Não porque seja um anjo, que foi na terra, mas porque é uma ideia que te dá conforto e que te faz ficar ligado às tuas origens e às pessoas.
Aqui o “Catálogo de Silêncios” fala de mais lugares. Alarga um pouco os lugares. E entro na minha idade adulta também aqui. A minha vida de cidade.

Podemos considerar que este livro pode ser encarado como uma sequela natural ao "Today is a Long Time". Pelo menos uma sequela espiritual?
Isso definitivamente que sim. É o tal nascer, ter as origens, vais à tua vida e depois voltas. Cada vez considero as minhas origens mais importantes. Nunca tive vergonha de ser de uma aldeia de meia dúzia de pessoas. Ter nascido na casa dos meus avós maternos é uma coisa de que tenho um orgulho imenso. Mas foi por mero acaso, pelas condições de vida serem miseráveis. Mas isso para mim tem um significado muito importante.
Estes silêncios que podes construir ao ver cada uma destas imagens, são lugares de memória para mim. Por onde passei e continuo a passar. Lugares que se modificaram. A paisagem muda, pela acção do Homem ou da própria Natureza.
Sim, uma sequela do “Today is a Long time”. Uma coisa mais ampla, mais adulto no sentido que revisitas lugares onde já eras mais espigadote quando lá estiveste e lá voltaste.
Há uma fotografia que, para mim, me trás à ideia os dias em que ia com o meu avô arrancar batatas e eu dormia uma sesta, em cima da rama das batatas, depois do almoço. São tudo questões que passei enquanto infante. O que este modo de vida me ensinou. Humildade, honestidade, rectidão, são coisas que ficaram. E estes espaços têm muito disso.
É curioso que, por exemplo no projecto em que tu participaste na coleção, a Tosca[ZINE], “Sonhando versos e sorrindo em itálico”, que é um verso do Álvaro de Campos, está na mesma linha. Sempre origens. E não o é apenas porque foste fotografar os espaços da tua terra. É algo em termos espirituais que está para além disso. E é algo que tem a ver com a pessoa que és. Esses locais evocam e te fazem sentir que pertences a um sítio.
Há um destes textos que evoca essa imagem, que é a terra chamar-te. Um individuo dizer isto é uma metáfora, mas é como se a terra te chamasse – “Tu és daqui. Vai lá para o Porto, vai para Lisboa, vai para a China. Mas tu és de Riodades”. E a determinada altura da tua vida começa a ser importante o sítio onde vais ter a última morada.
Apesar de, neste momento, não conhecer lá ninguém. Mas o que me chama é o sítio, é a terra. É uma coisa que entendi há uns anos atrás, quando um dia visitei os meus avós e quando sai de casa, comecei a chorar desalmadamente. E disse – “Pode ser a última vez que os veja e esta terra chama-me”.
Isso dá-me serenidade, saber que pertenço.

Quando, como e onde é que se pode adquirir o "Catálogo de Silêncios"?
Neste momento estou ainda a trabalhar na versão final. Estou a trabalhar na capa, na fonte. A capa está decidida, a fonte está decidido que vai ser alterada. Mas tirando isso, o livro está pronto. A ideia é ser uma publicação que seja acessível à maioria das pessoas.
Um enorme agradecimento ao Arlindo pelo seu tempo e disponibilidade. Os trabalhos de Arlindo Pinto estão disponíveis online em arlindopinto.com e para compra em arlindopinto.com/shop .
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