Faz um ano que quatro fotógrafos viajaram para Pripyat, Ucrânia. Foram à procura do que ficou depois de Chernobil. Dessa viagem resultou o livro 11977 e uma exposição homónima. Francisco Mendes é um desses quatro fotógrafos. Nascido na década de 70, psicólogo de formação e com um percurso na fotografia a chegar às três décadas. No seu percurso destaca os projectos:
- Zoom Id – projecto de retrato, focado na fotografia de identidade e respeito e na percepção interna, externa e aspiracional do ser.
- Alma – projecto realizado para a Unidade de Cuidados Continuados na Buraca.
- Help Portrait – projecto de recorrência anual focado na fotografia em bairros sociais ou associações no qual participa desde 2015. Nas palavras do próprio “Exercício da humildade e o uso da fotografia para fazer bem aos outros”
Este projecto que vão apresentar no IPO no dia 28 começou com uma viagem a Chernoby. Como é que começou a ideia da viagem?
Gosto particularmente da ideia de viajar para fotografar, porque me permite dedicar tempo para fotografar. Já o tinha feito para o projecto do livro de São Tomé e Príncipe.
Quando estou aqui em Lisboa não tenho muito tempo para fotografar. E portanto quando o convite (do António Matos) para participar neste exercício (de fotografia) soou-me bem. Era uma oportunidade de estar a fotografar e não estar com outra agenda.
O que levaste contigo nesta viagem e o que estavas à espera de encontrar?
Eu sou, ou melhor vejo-me na maior parte das vezes, como um fotógrafo de retrato. Porque é o que eu gosto de fazer. Sou psicólogo de formação e é o que eu, na maior parte das vezes, sei fazer, que é conversar com as pessoas e desafiá-las a partir dessas conversas.
Portanto o exercício de Chernobil permitia-me fazer uma passagem para um contexto diferente e desafiar-me nesse ponto de vista. Porque sabia que o retrato não seria o óbvio que sairia de uma cidade como Pripyat. Procuro nos retratos encontrar ligações emocionais com as pessoas, também neste caso de Chernobil, fui à procura de como podia encontrar visões e ângulos que permitissem ligar emocionalmente quem pudesse estar naquele contexto do passado ou quem fosse ver as imagens no contexto, que hoje tem esta imagem muito cinzenta, mas como nós dizemos no livro, procuramos que a esperança sobressaia sobre o processo do preto e branco.
Foi o desafio de um amigo, foi o querer desafiar-me fotograficamente, foi o permitir-me dar-me tempo para fotografar, e foi a vontade de procurar ligações emocionais onde elas são mais difíceis de encontrar.

Das quatro pessoas do grupo, o teu processo fotográfico é o que acaba por ser mais desafiado, exactamente pela identidade que tens na fotografia. Como disseste a tua fotografia está muito ligada às pessoas, ao retrato, e ao retrato intimo e vulnerável. Chegas a Chernobil e encontraste uma situação completamente deserta. Desprovida daquilo que compõem a tua zona de conforto. Também o tempo para fotografar não era alargado. Queres falar um pouco sobre o que foi uma experiência tão intensa em tão pouco tempo?
Sim, Chernobil tem essa particularidade, não podemos estar muitas horas na zona e faz com que nós, apesar de irmos com tempo para fotografar, tenhamos que ser relativamente rápidos e astutos. O melhor exemplo disso é o Hospital. Quando entramos no Hospital sentimos um ambiente, uma aura pesada. Tem muita beleza estética apesar de muita degradação.
Ter o tempo contado acaba por não ser muito diferente do que quando estamos em contexto de retrato. O retrato que mais gosto é o retrato intimo, como dizias e bem, em que primeiro converso e por consequência fotografo. Procuro que seja assim. Na verdade lá não pude conversar com o espaço, porque não tinha muito tempo para isso. Em segundo o contexto é inóspito e difícil. Tinha de chegar rapidamente, perceber o que e que dali eu queria.
Confesso que não tinha pensado nisso mas é um desafio interessante. Olhar para o espaço e ter de conversar com ele o mais rápido que eu conseguisse para fazer o exercício de intimidade que eu queria fazer.
É comum, neste tipo de viagem, levarmos uma ideia pré-concebida daquilo que podemos encontrar, ou a historia que vamos à procura. Foi o teu caso ou ias como uma tábua rasa à espera de absorver o que encontrasses?
Essa coisa da Tábua Rasa é sempre um exercício quase utópico. Conheço pessoas que fazem isso, e outras que não. Percebo porque é que não fazem. É inteligente não fazer. Quando viajo procuro um exercício de ter o menos informação possível. Gosto efectivamente de ser surpreendido. Gosto de chegar aos espaços sem nunca os ter vistos. Gosto de descobrir o local no momento e não antes.
Procurei, como faço e como tem sido em todas as viagens, saber o menos possível sobre o espaço e a historia, para depois lá descobrir, desprovido de informação, também de preconceitos. É uma opção, porque considero muito inteligente quem prepara as viagens porque conseguem poupar algum dinheiro e ver mais. Mas eu prefiro ser surpreendido.

É engraçado dizeres isso porque, no grupo, pelo menos o António (Matos) fez exactamente o oposto. Achas que isso de alguma forma se reflectio na forma de ver o espaço, ou Pripyat é de tal maneira avassaladora que as ideias tiverem que se re-formar?
Voltava, voltava. A única razão pela qual podia não voltar é porque gostava de fazer outras viagens parecidas e voltar lá significa que não faria outras para fazer essa. Neste ponto de vista escolhia outros (destinos), mas gostava de voltar no Verão. Acho que pode ser uma experiência completamente diferente. Fotografar aquela zona no Verão deve ser completamente diferente. Mas voltava, sim.
E voltavas?
Sim, também costumo dizer que me dou ao luxo de não preparar nada porque há sempre alguém que o faz. Estar no espaço tem toda uma carga emocional que é impossível ver em contexto de vídeo ou de imagens. Essa diferença sente-se muito, portanto é sempre uma descoberta como foi para todos, mesmo para quem preparou mais a viagem do ponto de vista daquilo que era a sua expectativa, alias eu acho que se voltasse-mos lá iamos ter outra vez a mesma chapada de realidade, mesmo tendo lá estado há um ano.Procurei, como faço e como tem sido em todas as viagens, saber o menos possível sobre o espaço e a historia, para depois lá descobrir, desprovido de informação, também de preconceitos. É uma opção, porque considero muito inteligente quem prepara as viagens porque conseguem poupar algum dinheiro e ver mais. Mas eu prefiro ser surpreendido.
Isso é uma boa questão, o voltar lá no Verão. Achas que a viagem, tendo sido em Fevereiro, portanto, num clima diferente daquele que temos em Portugal, neve e frio bastante considerável. Como é que isso influenciou a forma como vocês sentiram o sítio?
Em Portugal não temos temperaturas de -5 e -6. Entrar em Kiev e fazer o exercício de nos ambientarmos à temperatura e a seguir quando chegamos a Pripyat, o vento, a neve, o gelo no chão, tudo isso, são exercícios de realidade. E quando essa realidade é tão diferente da nossa, aumenta a percepção, os nossos sentidos ficam mais alerta, e acho que os meus colegas também sentiram isso. Aquele momento de Inverno que nós fomos visitar obviamente aguça a realidade porque a transforma ainda mais pesada. E o frio acho que teve um papel importante para isso. Resumindo a temperatura e o frio só vieram trazer camadas de realidade para nós dada a diferença foram aumentadas.

Vocês estiveram lá em Fevereiro de 2019. O livro vai sair agora em Fevereiro de 2020. Porquê um ano de diferença. Achas que haver este ano de interregno fez-vos olhar para as imagens com algum distanciamento emocional da própria viagem, era um tempo que era necessário?
Somos quatro, com passados fotográficos e visões da fotografia muito diferentes, tudo isso, eu acho que faz com que enfim a mescla de imagens seja sempre um desafio. Curiosamente diria que foi estranhamente fácil a construção de uma narrativa. Já estive em algumas construções de narrativas com outros trabalhos e é sempre muito desafiante perceber por onde começar, onde terminar e o que é faz com que cada imagem caiba num determinado momento ou espaço. Essa foi a parte que eu achei mais, não vou dizer fácil, mas que as coisas fluíram com facilidade.
Este ano também serviu para nos dar alguma distância do momento obviamente, mas também de percebermos que queríamos fazer um livro. Essa decisão foi muito à luz de partilhar com outras pessoas o que foi uma experiência, e de percebermos que tínhamos uma sequencial de imagens ou uma narrativa que fazia sentido ser publicada, porque podíamos não ter. Não era nem melhor nem pior se não o tivéssemos. Todos nós temos profissões para além da fotografia, portanto a fotografia acaba por ter aqui um papel, para uns mais importante, para outros menos, mas paralelo.
És um grande defensor de exposições, aliás a esmagadora maioria dos teus projectos teve como resultado alguma espécie de materialização expositiva. Para além do livro vai haver uma exposição com inauguração no mesmo dia. Quão importante para ti é a exposição?
É verdade. Curiosamente nunca tinha posto as coisas assim e é uma realidade. Eu sou particularmente fã da historia da Vivien Maier, que passou a vida a fotografar e nunca mostrou nada a ninguém, nem a ela própria, que é o mais interessante. Curiosamente tenho um exercício que é antagónico a esse. Gosto de partilhar com a comunidade. E há uma razão, agora pensando, assim que fazes a pergunta, consigo perceber a razão pela qual isso acontece. O meu gosto pela fotografia, enquadra naquilo que eu sou, também numa coisa maior que é o facto de eu ter como missão de vida tornar as pessoas maiores. E tornar as pessoas maiores é, no meu ponto de vista, fazê-las ver mais, fazê-las ter uma visão maior daquilo são e que podem ser. O acto expositivo para mim tem isso. Acredito que se as pessoas pusessem os seus dons e talentos ao serviço da comunidade, as pessoas faziam mais vezes aquilo que gostam, e a comunidade usufruiria muito mais daquilo que é uma partilha entre pessoas.
O que faço em fotografia é para oferecer à comunidade. O dinheiro do livro que nós vamos fazer é para oferecer ao IPO, o meu projecto (Alma) foi para oferecer à Unidade de Cuidados Continuados, sempre que faço algum trabalho de fotografia esse dinheiro é oferecido a uma associação. O Zoom Id foi para ajudar a Casa da Criança de Tires, o meu primeiro projecto (Smokes and Reality) foi para a Ajuda de Berço. Tudo o que eu faço em fotografia é para oferecer. E a exposição serve para outras pessoas se inspirarem neste processo, para que elas também, a partir de talentos que têm, possam servir a comunidade com os seus projectos e com o que sabem fazer.

Se tivesses que descrever sumariamente qual mensagem que o Francisco (não necessariamente o grupo) queria passar no livro e na exposição?
No livro, eu enquanto fotógrafo vou tentar dissociar-me do grupo, a minha ideia foi procurar sempre ligações emocionais entre o leitor e a imagem. A imagem central do livro (imagem acima) é a imagem que eu mais consegui esse exercício. (A mensagem) Foi que as pessoas se sentissem ligadas emocionalmente ao espaço, que se sentissem nele. Mesmo a edição e tudo aquilo que fui tentando fazer tinha essa lógica, que é criar ligações emocionais. Num sitio onde é difícil fazer isso, porque não há pessoas, não há expressões. No livro isso é muito óbvio. Na exposição não sei se consigo dizer que é muito diferente disto. Agora vou-me remeter para o grupo, foi apesar daquele cenário, gostávamos que a esperança sobressaísse. Ficasse mais a esperança que o negro da realidade.
Portanto, acho que a exposição acaba por ter esse mesmo papel. Na exposição vamos ter uma imagem que já tem uma pessoa. A própria capa do livro é um exercício de esperança. Uma folha, a água a descongelar e a folha a sobressair da neve. Queremos que esta esperança sobressaia do processo fotográfico. Acho que a exposição é mais capaz de mostrar isso. A impressão de imagens de 50 cm, a dimensão faz com que essa esperança possa ser mais real.O que faço em fotografia é para oferecer à comunidade. O dinheiro do livro que nós vamos fazer é para oferecer ao IPO, o meu projecto (Alma) foi para oferecer à Unidade de Cuidados Continuados, sempre que faço algum trabalho de fotografia esse dinheiro é oferecido a uma associação. O Zoom Id foi para ajudar a Casa da Criança de Tires, o meu primeiro projecto (Smokes and Reality) foi para a Ajuda de Berço. Tudo o que eu faço em fotografia é para oferecer. E a exposição serve para outras pessoas se inspirarem neste processo, para que elas também, a partir de talentos que têm, possam servir a comunidade com os seus projectos e com o que sabem fazer.
Queres deixar uma mensagem às pessoas que irão, ou poderão, visitar a exposição no dia 28 no IPO e (possivelmente) adquirir o livro?
Sim, a única mensagem que gostava de passar é, que é possível pôr o talento ao serviço da comunidade. Os outros fotógrafos naturalmente terão visões completamente diferentes desta, porque todos temos raízes diferentes, mas para mim essa é a principal. É possível fazer isso com qualidade, é possível que a sociedade precise de exemplos, sem soberba. Sou exemplo para a minha filha, por razões óbvias, mas não querendo ser exemplo nesse sentido para ninguém, acredito que a sociedade precisa de exemplos. Precisa de pessoas que provem a outras pessoas que a bondade é possível. Portanto espero que todas as pessoas que visitem aquele exposição e que comprem o livro, o façam nessa mesma lógica. Que as inspire a chegarem a casa e a pensarem – “Qual é o talento que eu tenho que não estou a por ao serviço da sociedade e que devia fazê-lo?”.
Isto para mim é a principal mensagem. Diria que mais circunstancial à própria exposição, que todos que vamos (à exposição) temos posições completamente diferentes e que todos o fazem da melhor forma que sabem de certeza, mas que também sirva para percebemos que, quanto mais depressa assumirmos um erro, mais depressa o reparamos.
Chernobil é a prova disso. Chernobil é o erro que foi cometido e o facto de ter sido escondido durante algum tempo fez com que mais pessoas morressem, fez com que mais pessoas sofressem de cancro (por isso é que estamos a expor no IPO).
Assumir o erro para nos libertar. Para fazer coisas melhores e portanto do ponto de vista da mensagem que a esperança ganhe cor, ou seja que consigamos ter uma visão positiva para o futuro.


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